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Recordo o José Miguel Ramos de Almeida

Homem de paradoxos, um pediatra no Hospital militar central de Luanda durante a guerra! Mais, pediatra neonatalogista. Dizia-se que tal se devia a um tiro no pé? O Ramos de Almeida que eu viria a conhecer bem nunca daria um ?tiro nos pés?, mas tal aconteceu. Os oficiais do Quartel-general e suas mulheres terão ficado encantados ? teriam um pediatra de prestígio para seus filhos. Felizmente este incidente não lhe perturbou a marcha nem a carreira.

Em Angola para onde, alferes-miliciano médico, eu tinha sido mobilizada, soube que o JM Ramos de Almeida, já pediatra de renome, também para lá tinha sido. Em “Camuflado, Sine Dolo” conta saborosíssimas histórias de um médico camuflado no exército português nos primeiros anos da Guerra de Angola, um jovem enfant terrible da nata da sociedade lisboeta de há meio século.

Escritas por um dos mais brilhantes pediatras de uma geração de oiro da Pediatria portuguesa com uma pena de cisne (pato é pouco, pavão demasiado) que fruía a vida com o prazer

de roçar os limites e o à-vontade e o distanciamento irónico de quem se cria invulnerável.

Creio que todos os médicos que estiveram na nossa última guerra de África lerão o livro com prazer. O seu “Vício de pensar” deveria ser lido por todos os estudantes. (Acta Pediátrica Portuguesa - Efemérides da Pediatria 2009). Respondeu-me:

O José Miguel Ramos de Almeida que só agora tomou conhecimento das suas palavras, a confessar que julga possuir um pequeno leque de penas de pavão qu agora abriu totalmente por essas palavras virem de …. Henrique Carmona da Mota, que abraça com longa amizade.

Agosto de 2009


Homem de paradoxos, um pediatra no Hospital militar central de Luanda durante a guerra! Mais, pediatra neonatalogista. Dizia-se que tal se devia a um tiro no pé… O Ramos de Almeida que eu viria a conhecer bem nunca daria um “tiro nos pés”, mas tal aconteceu. Os oficiais do Quartel-general e suas mulheres terão ficado encantados – teriam um pediatra de prestígio para seus filhos. Felizmente este incidente não lhe perturbou a marcha nem a carreira.

Nos primeiros anos de pediatra li um artigo que JMRA publicara na Revista Portuguesa de Pediatria. Questionava a axioma da insuperabilidade do leite materno, admitindo ser possível encontrar melhor. Menos que esta tese iconoclasta, o que mais me encantou foi a epígrafe desta: Os hábitos são como os sapatos velhos; quanto mais velhos, mais nos custa abandoná-los”, que atribuía a “um autor anónimo do Sec XX”.


Mais tarde JMRA presidiu a um júri nacional para os exames de especialidade pela Ordem dos Médicos que nesse ano se realizaram em Coimbra. A enfermaria de Pediatria era um salão enorme no então HUC; ao lado, uma minúscula copa e um gabinete que servia de sala de reunião de médicos, enfermeiras, de cacifos para batas e de um armário para livros. Era ali que recebíamos os “delegados de propaganda” e também ali se cuidava dos doentes mais graves…

Tudo acanhado, mas bem arrumado. Era ali que o júri nacional iria trabalhar e era a mim que competia recebê-lo…  Ao entrar JMRA reparou na “biblioteca” e, ao ver os volumes da Pediatric Clinics of North America, comentou: Esta é a melhor revista de Pediatria do Mundo….

À maneira coimbrã havia uma “sebenta” de Pediatria embora escrita por nós e de que eu era um dos editores; todos os anos era revista. Quando me pareceu estar madura, atrevi-me a pedir um parecer ao JMRA, já então meu amigo; semanas depois recebi a sua minuciosa e bem fundamentada apreciação.

A “Sebenta”, nome bem coimbrão que é de conservar.

Aqui estou a cumprir a condição que me pôs: o envio de “opiniões, achegas, críticas e sugestões”. Estas resultam das leituras que fiz e da minha experiência pessoal – quatro décadas de prática intensa – cujo valor, sem falsas modéstias, conheço bem e que com os vícios de observar e pensar que deus me deu, me torna independente perante muitas ideias feitas. Porém, isto não exclui humildade (apesar de essa virtude não ser o meu forte) em face de outras experiências e juízos, desde que inteligentes, coerentes e comprovados, ou seja, o mais possível libertos de falácias, porque totalmente libertos não há.

Há que conservar uma dose de reserva perante as estatísticas.

As “Lições de Pediatria” lêem-se bem. A prosa é enxuta e precisa. Dialoga-se com o leitor num misto de Tratado científico e trabalho de divulgação. A realidade local é privilegiada.

Criticam-se as crenças e mitos tradicionais, quer das famílias quer dos próprios médicos.

A prevenção, a etiopatogenia e os sinais de perigo são abordados com o destaque devido.

As directrizes estão ordenadas de forma compreensiva e, pragmaticamente, muitos fármacos são referidos pelos seus nomes comerciais.

São citados escritores portugueses. Curiosamente, durante anos, ao terminar as aulas teóricas, lia aos alunos ou um poema ou um trecho de prosa de que gostava. Ouviam com interessa. Depois, transferi essa missão para os que antes eram público e o interesse cresceu.

Nas Lições os objectivos pedagógicos e a avaliação das atitudes revelam critério e maturidade e os capítulos dedicados à iatrogenia e consulta pediátrica, bom senso e experiência. Algumas frases parecem extraídas das minhas aulas, o que muito me honra.   

Vindo de quem tinham vindo poucas avaliações me sensibilizaram tanto.

Último paradoxo, JMRA que desde sempre se dedicou à Neonatalogia, primeiro em Santa Maria e depois na Maternidade Alfredo da Costa, doutorou-se com a uma tese sobre adolescência: «Adolescência e Maternidade».


Por regra a amizade tolda a isenção e a memória faz ao arquivo o que a lágrima faz às imagens mas as biografias excepcionais não sofrem com essas inevitáveis paralaxes.

 

Coimbra, 28 de Junho de 2024

H. Carmona da Mota