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IN MEMORIAM JMRA. Testemunhos

JOSÉ MIGUEL RAMOS DE ALMEIDA (1930-2024) - UM TESTEMUNHO

 [Eu não existo. Sou todos os livros que li, todas as pessoas que amei, todos os lugares por onde passei]

Jorge Luís Borges

No passado dia 24 de Junho faleceu em Lisboa o Professor José Miguel Ramos de Almeida (JMRA), uma personalidade de eleição e uma figura brilhante da Medicina, Pediatria e Perinatologia em Portugal, com projecção internacional. Pioneiro e visionário, excepcionalmente dotado, considero-o o fundador da moderna Neonatologia, em Lisboa na década 65-75, tendo trazido dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, e outros Países novas práticas, que contribuíram decisivamente para a ampliação do conhecimento e progressos no âmbito da saúde no nosso País. A sua obra enriquece a História da Medicina.

Com a notícia que circulou, gerou-se na minha mente um misto de saudade misturada com muita dor. Sem pretensões biográficas, mas como seu grande amigo e admirador, e dado que a sua história de vida foi largamente divulgada nos meios de comunicação social, designadamente quanto ao seu currículo de excelência, à sua cultura e à sua intervenção cívica, entendo como dever ético testemunhar certos episódios singelos, vivências do convívio com JMRA ao longo de várias décadas.

Embora não tivesse sido seu colaborador directo, pois trabalhávamos em diferentes Instituições, tivemos muitos encontros em diversas circunstâncias, quer  como membros de júris de concurso da carreiras hospitalar e universitária, quer  em congressos e reuniões científicas nacionais e internacionais, quer ainda no âmbito de funções ligadas aos corpos directivos da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) que integrávamos.

Dava gosto conversar com JMRA, personalidade de cultura superior, muito abrangente. Ressaltava aos olhos de todos, entre muitas qualidades, elegância, notória no seu estilo linguístico, e sentido de humor com ironia inteligente.

Recordo as reuniões pessoais e informais por mim solicitadas para troca de ideias e satisfação dos meus pedidos de opinião sobre os mais diversos assuntos, desde análise de artigos científicos, organização assistencial, humanidades, história da medicina, ética, sociologia, cultura, etc. Por conseguinte, encontros, para mim muito frutuosos e que muito me influenciaram, com uma personalidade de cultura superior, gerando-se uma empatia que muito me honra.

Lembro-me de me ter contado aspectos interessantes da sua juventude como aluno da St. Julian’s School em Carcavelos desde os 5 anos de idade; por isso falava o inglês fluente como segunda língua, para além doutras línguas como o francês. E, a propósito das suas tarefas de estagiário-bolseiro, treinando em modernos hospitais, designadamente nos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, relatou-me muitos casos clínicos interessantes que protagonizou.  

Em 1969, em evento organizado pela SPP em Viana do Castelo, tive o primeiro contacto “científico” com JMRA a propósito da minha primeira comunicação oral sobre hipoglicémia neonatal. Ao tempo, eu, novato interno estefânico, sendo Presidente da Mesa JMRA, o mesmo criticou o trabalho. Este episódio singelo, que ficou na minha memória foi para mim uma aprendizagem que me despertou e estimulou, ficando a admirar tal figura.

Sendo meu hábito, desde os tempos de estudante no Hospital de Santa Maria, assistir a provas académicas públicas na respectiva Aula Magna, não faltei às provas orais públicas JMRA para acesso à direcção da Neonatologia no quadro da Maternidade Alfredo da Costa (MAC).  O brilhantismo do candidato fascinou-me. Posteriormente, ao longo dos anos, ocupada a vaga de Neonatologia na década de 70, com nova liderança, assistia-se a uma era de práticas inovadoras em Neonatologia/Perinatologia, que fez escola.

Em 1991, numa das provas académicas a que se submeteu JMRA na Universidade Nova de Lisboa (de agregação, antes de ser professor catedrático) marcou-me o que referiu no âmbito da discussão do Relatório Pedagógico. A ideia era: “Todo o estudante de medicina, em estilo de simulação como doente, deveria protagonizar as fases e/ou momentos difíceis de vulnerabilidade por que um verdadeiramente doente passa ao ser hospitalizado”. 

JMRA deu-me a também a honra de aceitar o meu convite para elaborar o prefácio numa monografia que publiquei em 2004 sobre “Neonatologia no Mundo e em Portugal”. Sem desejar ser abusador, transcrevo uma das frases do seu texto, consubstanciando o seu espírito visionário:
.... “Nos países ricos talvez não seja quimera acreditar que dentro de algumas décadas se terão dado transformações nunca antes imaginadas: uma natalidade regulada informaticamente; a selecção das características somáticas e psíquicas do filho por catálogo; o parto vaginal considerado anacrónico e obsoleto; desaparecimento da limitação à viabilidade; mortalidade neonatal reduzida ao mínimo....”.  Perder-se-á a singularidade da pessoa, o excitante mistério da gestação, a expectativa do nascimento?”

Na sequência do seu doutoramento em 1987 publicou diversos livros. Destaco o relacionado com a sua tese sobre “Adolescência e Maternidade”, e outros três:” Vício de Pensar” (1998), “Do Sótão das Memórias” (2002) e Camuflado (2008). Li e continuo a reler, com avidez e grande prazer, os três últimos, realçando sobretudo o primeiro destes pelos temas abordados por um grande “pensador”, JMRA. Trata-se de temas, com real interesse de leitura (diria mesmo, com obrigatoriedade de leitura) pelas novas gerações de médicos e estudantes de Medicina (e não só!), com a grande virtude de ligar as Humanidades à Ciência. Dá gosto ler poemas de Fernando Pessoa, Guerra Junqueiro, Miguel Torga e Almada Negreiros, a propósito da relação mãe-filho!

Na parte final do “Vício de Pensar”, em estilo de “Apêndice”, são apresentados alguns resumos de estudos originais, e até algo curiosos, de JMRA publicados em revistas estrangeiras, e de cartas a editores das mesmas, relativamente a certas as noções muito vulgarizadas mundialmente, mas consideradas incorrectas. Destaco os seguintes títulos: “Rh blood group of grandmother and incidence of erythroblastosis”, “Measurement of arterial pressure” e “A matter of terminology”. Por exemplo, JMRA afirma: “… The expression O2 saturation is inaccurate”…explicando que a saturação diz respeito à Hb e não ao O2.

O facto de dois dos mesmos artigos incluírem desenhos de João Abel Manta como explicação complementar a propósito da patogénese das nosologias descritas, poderá eventualmente interpretar-se como manifestação da sensibilidade artística de JMRA, ligando a Ciência às Humanidades.

Para terminar estas linhas de profunda admiração e de tributo, mas de saudade e pesar, retirei uma frase de Paul Valéry (1871- 1945), que se adapta à figura ímpar de José Miguel Ramos de Almeida: democrata, cidadão pleno, humanista, clínico de excelência, investigador e pedagogo: “Pensar como Homem de acção, agir como Homem de pensamento”.

                                                                                  João Manuel Videira Amaral

NB. Utilizo o anterior Acordo Ortográfico